sábado, 30 de novembro de 2013

                                            Foto de Aristides Alves


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
LONGA JORNADA NOITE ADENTRO

Para senhor Epifânio
In memoriam


                   O texto e a encenação
           A encenação de Longa Jornada Noite Adentro encontra-se em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, Escola de Teatro, até 15 de dezembro. O texto é do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888 – 1935) e a tradução de Helena Pessoa. A direção é do ator-diretor e professor Harildo Déda, uma Produção da Companhia de Teatro da UFBA.
           O público soteropolitano tem a oportunidade de apreciar um texto que, por sua envergadura e importância capital para o teatro, não é levado à cena com a regularidade que merece. A Companhia de Teatro da UFBA, com todas as dificuldades que enfrenta, preenche uma lacuna. Estamos diante de uma encenação que cumpre seus objetivos, pois dá conta da importância e complexidade do texto.
            A peça conta sobre a família Tyrone. O’Neill mergulha no passado de sua família no momento em que vive a crise desencadeada por situações trágicas que envolvem todos os membros,  sobretudo a mãe Mary Tyrone, e Edmund, o filho mais novo. Revolvendo o passado de sua família, sem reduzir o texto somente a uma autobiografia, o autor mostra-nos o dilaceramento dos personagens, todos eles enlaçados pelo amor. Mas este afeto não consegue aplacar o sofrimento que marca a vida familiar. Confinados em uma casa isolada, atravessam o dia e a noite perscrutando a si e principalmente ao outro, de forma a expor seus sonhos e suas frustrações. Diante de seus dramas, não conseguem perdoar-se uns aos outros, embora o amor entrelace estes seres, tornando o conflito ainda maior.
           Através das amargas críticas, o passado emerge de maneira crua. No entanto, paira no ar alguma coisa que se quer esconder. Movidos por uma autointerdição, os personagens usam das meias palavras para não revelar o que de fato fragiliza a todos: a tuberculose de Edmund e o vício morfinômano da mãe. Acrescente-se a este quadro a avareza paterna e a embriaguez de Jamie Tyrone, o filho mais velho: o problema de um afeta ao outro, numa teia de situações melodramáticas que talvez fossem apressadamente consideradas hoje em dia como piegas ou "teatro de segunda", mas que em nada afetam a grandeza do texto. Um travo melancólico perpassa cada cena do longo texto finalizado por Eugene O’Neill, em 1941.
           Ao concluir sua obra, o autor decidiu que ela seria encenada vinte e cinco anos após sua morte, visto que um dos personagens ainda vivia. Ainda assim, o texto não pode ser lido ao pé da letra como uma autobiografia. Melhor seria vê-lo como uma bioficção. O que transborda das páginas e do palco é criação. A imaginação do autor entra em ação para dar vida aos acontecimentos da peça, mesclando o seu mundo particular com dados da realidade. Isso é fruto de sua capacidade criadora, inventiva, que torna as particularidades de Longa Jornada Noite Adentro amplas, universais. Estas qualidades fazem com que o texto continue atual, visto sua atemporalidade.
           Na peça, o dia avança ensolarado para declinar na neblina de uma noite escura, iluminada pela luz de um farol que surge em diversos momentos da ação. Paradoxalmente, é nas sombras da noite que o interdito é revelado de maneira clara. Nem mesmo o efeito da morfina que anestesia Mary Tyrone impede que ela complete o círculo e retorne como um ouroboros, ao início de tudo. Aí se dá o eterno retorno. O passado resurge em sua potência e a personagem revela o momento em que, deixando uma pretendida vida de religiosa, se apaixona pelo famoso ator James Tyrone, marco inicial desta família que vem a ser solitária e debate-se entre a acusação e o afeto.  
           O texto em quatro longos atos é reduzido para dois, de maneira sábia e oportuna por Harildo Déda. Diante da aceleração do tempo presente, levar à cena Longa Jornada Noite a Dentro  sem os cortes necessários, afastaria o espectador desacostumado a apreciar eventos deste porte.
           Sabedor do realismo do texto, o encenador não se prende a uma fórmula, quebrando algumas regras da estética convencional: não está em cena o realismo histórico. O que se vê no palco é uma encenação apoiada no texto, sem se escravizar a ele. Marcando com rigor e dinamismo, Déda faz a sua leitura de Longa Jornada Noite a Dentro sem cair na facilidade amenizadora do drama que se desenrola passo a passo. Considerando seus momentos de alta e de baixa intensidade, o encenador colore a cena apoiando-se numa partitura em que as pausas e os silêncios completam o dialogar constante dos personagens. Precisam falar, precisam ser ouvidas. Precisam dizer de suas angústias.
           A encenação revela uma segura direção de atores. A cena é desenhada com marcas objetivas e de grande efeito, fazendo os atores se deslocarem em função das dinâmicas da ação. São visíveis, mas não óbvias, a construção a partir da análise ativa, um princípio stanislavskiano e uma escolha adequada para o universo da peça. Este caminho não congela as interpretações em maneirismos; ao contrário, aprofunda a dimensão física de cada ator na relação com o espaço e com os objetos. Gestos, pausas, deslocamentos ampliam a intersubjetividade do drama, mantendo os espectadores como observadores atentos. Ao mesmo tempo, Déda impõem estratégias que rompem com o fechamento do palco, trazendo os personagens para mais perto da plateia.
           Contando com cenário e luz de Eduardo Tudella, lembrando ambientes do pintor Edward Hooper, o encenador orquestra com bastante segurança os elementos constitutivos do seu espetáculo. Preocupa-se com a tensão e a investigação interior, muito mais do que com a história, pois o foco de Eugene O’Neill está no confessionalismo: isso faz com que o passado seja escavado intensamente. Ainda que mostre o domínio criativo e técnico, a cenografia poderia valer-se de alguns recursos que expressassem a decadência do lar. A decadência não está somente nas relações da família Tyrone, mas na própria casa. Contudo, isso não diminui a qualidade do que se vê em cena: somente que estes elementos faltantes proporcionariam ao espectador mais um dado a ser lido como um signo relevante.
           É notável o controle das emoções, mantidas esticadas ao longo do tempo ficcional, sem extrapolar os limites dramáticos. O que poderia tornar-se melodramático ou mesmo piegas é evitado ao longo dos acontecimentos.
           Cercado por uma equipe técnica de eficiência comprovada pelos detalhes da produção, um único senão salta aos olhos: o vestido rosa de Mary Tyrone no segundo ato, assim como a gravata brilhante da empregada Cathleen. Nos demais figurinos, Claudete Eloy acerta com bastante sobriedade, pois compreende o universo onde transitam os personagens, bem como a época em que se passa a ação. O corte das roupas femininas e masculinas, bem como a paleta de cores, harmoniza-se com o sóbrio e criativo cenário.
           A luz recorta o cenário, marcando os climas exigidos pela densidade dramática, colaborando para a atmosfera das cenas. O efeito final, com a luz do farol entrando pelas janelas, adéqua-se à situação na qual, sob o efeito da morfina, a mãe surge na sala como um fantasma, calando marido e filhos. Densa e bela, a cena, intensificada pelo Adágio para Cordas, de Samuel Barber, sustenta o entrecho e dá suporte para o monologar de Mary Tyrone. Com parcimônia, a sonoplastia contribui também para a profundidade emocional. A sirene de neblina que se ouve em alguns momentos corta os silêncios, aumentando a solidão dos que estão na casa. Solidão essa vivida pelo grupo familiar disfuncional. Este grupo se alterna em instantes de acusação e provocação, atitudes que escondem o que há de mais humano, o afeto. Sentimento que nutre pai, mãe e filhos, unindo-os, ainda que se avizinhe a derrocada final.
           Harildo Déda orquestra o canto fúnebre de Eugene O’Neill com grande segurança,  acerta nas suas escolhas.
           Retornando ao texto, focalizando o aspecto de biografia dramatizada, vemos que Edmund, o poeta persona do autor, se erguerá pela arte, como foi de fato a vida de Eugene O’Neill. O autor revive teatralmente o verão de 1912 como dramaturgo sabedor do seu ofício, e não se deixa prender somente pelos dados da realidade. O que se vê em cena é fruto de um processo de criação; dolorido é certo, mas profundamente humano, e é por isso que ecoa em nós, ainda que vivamos noutro tempo. No entanto, se olharmos atentamente para o drama de cada um dos personagens, veremos que eles não estão assim tão longe das nossas vidas, pois nos debatemos, de uma maneira ou de outra, com os mesmo problemas enfrentados por James, Mary Jamie e Edmund: o entorpecimento pelas drogas, a sovinice, os projetos não realizados e as demais doenças do corpo-espírito. No entanto, assim como os personagens de Longa Jornada Noite Adentro, ainda somos capazes de amar, pois somos humanos, contrariando o discurso da pós-humanidade defendido por certas correntes do pensamento pós-moderno.

           O elenco
           Uma encenação de qualidade, na qual os signos se organizam esteticamente, não deve prescindir de um elenco com capacidade para sustentar os personagens, ainda mais em um texto de envergadura como Longa Jornada Noite Adentro. Déda, não só diretor, mas ator de longa experiência e conhecida competência como professor de atores, soube escolher cinco intérpretes que se responsabilizam por dar vida às criações de Eugene O’Neill. E, seguindo suas orientações, o fazem com competência e unidade.
           Joana Schnitman (Mary Tyrone), Antonio Fábio (James Tyrone), Wanderley Meira (Jamie Tyrone), Vinicius Martins (Edmund Tyrone) e Patrícia Oliveira (a criada Cathleen) conseguem exteriorizar a densidade psicológica, mantendo as interpretações na justa medida esperada para personagens bem estruturados pelo autor, ainda que ele não tenha se debruçado com mais atenção no papel da criada.  O texto traza poética realista que necessita de uma construção espelhada na vida, mas o que vemos na cena e nas interpretações não é uma fatia da vida, mas uma elaboração por métodos que remetem aos princípios stanislavskianos.
           Compreendendo os personagens passo a passo, desde a análise até a vivência, os intérpretes revelam a maturidade e as variadas qualidades adquiridas com as experiências individuais ao longo de suas carreiras. Por eles, o encenador fala e se oculta, de modo que os exercícios formais estão sempre a serviço dos que estão em cena durante as duas horas em que decorre o espetáculo. Cabe aos atores, muito bem conduzidos pr Harildo Déda, modular o tempo ficcional à medida que este decorre da manhã à meia-noite, momento em que os demônios internos estão expostos. E é neste tempo que cada intérprete faz aparecer a sua construção, como se desenrolasse um novelo gradativamente, prendendo pela emoção a atenção do espectador. É notável o equilíbrio interpretativo, o que faz da encenação o lugar próprio do ator.
           Joana Schnitman constrói Mary Tyrone com sensibilidade aguçada: modula as emoções exigidas pelo papel. A atriz demonstra suas qualidades de intérprete numa estatura que somente as grandes atrizes são capazes de trazer para a cena. Sutilmente, a intérprete revela-nos os problemas que afligem a personagem, sua fixação em algo que se descobre na medida em que a ação se desenrola. Sua atuação é magistral, culminando com o monólogo final.
           Sobre a interpretação de Antonio Fábio, no papel de James Tyrone, o que se pode dizer é que o ator cresce superando os limites físicos, já que imaginamos o personagem como uma figura imponente, ídolo das plateias.  James é um ator que abre mão dos personagens grandiosos para encantar com sua beleza as mocinhas que iam ao teatro quando ele era o astro. Ator expressivo, Antonio Fábio caracteriza o personagem, mostrando sua arrogância e, principalmente, sua avareza. Em alguns momentos, o ator deixa entrever a humanidade escondida por trás da carapaça conservadora, mas volta a escondê-la, principalmente nas cenas com Jamie, personagem que Wanderley Meira faz de maneira vibrante. Nas cenas com Joana Schnitman, Antonio Fábio alterna afeto, mostrando-se inseguro, mas defendendo-se sempre das acusações desferidas por ela. A contracena entre eles é bom teatro.
           Como disse anteriormente, Wanderley Meira mostra seu personagem de maneira intensa, mostrando-se um ator de extensão interpretativa. Na perigosa cena da bebedeira, o ator transita de maneira precisa. Fugindo do clichê, assenta sua atuação variando os estados psicológicos que passam pela culpa, pela zombaria, resvalando pela inveja, para em seguida mostrar sua fragilidade diante do drama materno e da situação do irmão caçula. Representando um ator cuja carreira, imposta pelo pai, não deu certo, o Jamie de Meira  é um farrapo humano sem perspectiva. Wanderley Meira se encarrega de fazer com que estes estados anímicos tornem-se visíveis ao longo da ação.
           Vinicius Martins, o mais jovem entre os quatro intérpretes, encarrega-se de levar para a cena Edmund, o alterego de Eugene O´Neill. Aluno do Bacharelado em Direção Teatral da Escola de Teatro, Martins vem experimentando o palco como ator e vem crescendo a cada peça que faz. Quem o viu em Fala Baixo Senão Eu Grito, sob a direção do aluno-ator Georgenes Isaac, pode ter esta medida. O personagem criado por Vinícius Martins deixa transparecer o papel que ele exerce na peça, ou seja, Edmundo, ao mesmo tempo em que é participante, é espectador desse mesmo drama.
           Coube a Patrícia Oliveira o papel da criada Cathleen, um personagem que O’Neill não construiu como os outros. A atriz recém formada soube conduzir de maneira muito especial a figura da criada, injetando-lhe doses de ingenuidade e, ao mesmo tempo, sagacidade. Sua participação na ação proporciona o alívio cômico em meio à densa atmosfera que perpassa a peça.  Sua conduta na cena com Mary Tyrone tem um ar brejeiro e ao mesmo tempo safado, quando se serve da bebida do patrão. Vejo que Patrícia Oliveira valoriza e tira partido de um personagem posto na peça pelo autor para alinhavar o enredo. Sai-se bem a jovem atriz.

               Equipe Técnica
           A equipe mostra sua competência. Com seu empenho, o acontecimento chega ao espectador da maneira como foi concebido. Por ser um espetáculo da Companhia de Teatro da UFBA, é de estranhar a pouca participação de alunos nestas funções, mas vale registrar a presença de Pedro Souza na operação de som, João Saraiva e João Guizande como assistentes de produção. A ausência de outros alunos faz lembrar um fato muito importante quando da constituição da Escola de Teatro como espaço artístico-pedagógico. Nos espetáculos de A Barca, grupo criado por Martim Gonçalves, os alunos revezavam-se no palco, ora em papéis principais, ora em papéis secundários. Quando não estavam em cena, desempenhavam outras funções necessárias para o fazer teatral: eram assistentes de cenografia, de figurino, faziam a contraregragem,  recepcionavam o público. Este procedimento era parte da pedagogia do teatro.
           Finalizando, cabe ressaltar o cuidado com o material de divulgação de Longa Jornada Noite a Dentro, tanto os registros do processo em vídeo e fotos, quanto os cartazes, programa e marcadores de livros, todos muito bem concebidos e realizados.


Raimundo Matos de Leão

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

NARCISO
                
                Raimundo Matos de Leão

Narciso
De tanto olhar
espelho se tornou.
Congelado em si
a ninguém mais olhou.

Narciso
De tanto namorar
namorado se tornou
do espelho.

Narciso
Cego
Ensurdecido
Mudo para o mundo se tornou.

Narciso
Ensimesmado
Tornou-se um chato
Trancou-se em casa.
Murchou.


quinta-feira, 9 de maio de 2013

O que não quer calar

ARTE E POLÍTICA
Para que serve o teatro?
Para o diretor do Schaubühne de Berlim, não há teatro sem investimento público e sem ancoradouro na sociedade. No artigo, ele analisa as condições “materiais e espirituais” de uma renovação do teatro, que sofre não só com a austeridade, mas também com sua própria tendência de se deixar levar pela ideologia dominante
por Thomas Ostermeier
(Cena de 100% Zurich, espetáculo do grupo alemão Rimini Protokoll)
Nas pretensas democracias ocidentais, a garantia do interesse geral obriga o Estado a aumentar impostos, cujo produto será redestinado a diversas instituições de acordo com o que elas consideram justo ou indispensável. Que me perdoem a banalidade deste preâmbulo, mas parece importante lembrar como a noção de missão pública se inscreve no próprio cerne de nossas sociedades, a fim de permitir aos indivíduos e aos grupos sociais... o que exatamente? Ser feliz? Fazer sucesso? Aprender? Abrir-se para outras ideias, outras pessoas, outros coletivos?
A marcha triunfal do neoliberalismo, iniciada em Chicago nos anos 1970 e acelerada pela queda do “socialismo real”, traduziu-se na desregulamentação dos mercados financeiros, mas também na privatização de serviços e de instituições que dependiam, até então, da esfera pública. Essa mudança de paradigma não é estranha à perda de legitimidade do teatro durante o mesmo período. Grande parte da esquerda da Europa ocidental, tradicionalmente cética em relação às instituições, para não dizer antiestadismo, encontra-se, então, na dolorosa obrigação de defender o Estado contra a ofensiva dos novos discípulos do mercado.
Quanto a mim, sonho com uma sociedade livre do jugo da propriedade privada, na qual os bens e as riquezas pertençam igualitariamente a cada um de seus membros. Infelizmente, estamos muito longe dessa utopia. E o que é pior, a ideologia do mercado faz a suspeita de totalitarismo recair sobre qualquer reflexão a respeito desse assunto. Até mesmo o princípio de uma redistribuição parcial das riquezas, estabelecida pela burguesia conquistadora nos séculos XVIII e XIX, encontra-se doravante em risco.
Pouco tempo após a criação do Reich, em 1870-1871, durante o período conhecido como “dos fundadores”, teve origem – ou pelo menos foi institucionalizado, portanto, delegado à responsabilidade do poder público – tudo o que está hoje gravemente ameaçado: os transportes públicos, as escolas, as universidades, as bibliotecas, os parques etc.Na época, a burguesia considerava o Estado como a expressão de sua força material e espiritual. Atualmente, ela só o vê como obstáculo à sua prosperidade. Os estabelecimentos culturais com financiamentos públicos, que outrora provocavam a arrogância das elites, perderam na mesma ocasião uma boa parte de sua legitimidade.
Na Alemanha, desde 1992, dezoito teatros tiveram de fechar suas portas ou se fundir. Diferentemente do que se faz na França, o financiamento da cultura pertence exclusivamente aos Länders [estados]eàs municipalidades. Apesar de Berlim se vangloriar de ser um paraíso para jovens artistas, seu orçamento para a cultura não excede 2% dos gastos públicos. Se considerarmos que a parte do teatro, inclusive a ópera, representa apenas 1,1% do orçamento (deste, 0,7% somente para o teatro), os debates sobre cortes orçamentários suplementares parecem extravagantes. As proporções não são mais gloriosas em Hamburgo, segunda cidade do país: 2,1% para a cultura, 0,9% para o teatro e a ópera. Uma rápida olhada na situação francesa indica que, em 2013, os gastos públicos previstos para a cultura estão sendo reduzidos em 4,3% com relação ao ano anterior.

Por uma outra história da sociedade
A burguesia lançou ao mar a ideia fundadora de uma representação de si mesma orientada para algo diferente da avidez pelo ganho, enquanto o ceticismo visceral – e com frequência justificado – das classes populares contra esses “templos burgueses” encontra-se em uníssono sem recursos. Há um ano e meio, um motorista de táxi de Amsterdã, ao saber que trabalho no teatro, me disse sarcasticamente: “Now it’s payback time!” (É a hora da revanche!). O novo governo acabava de iniciar uma operação de desertificação inédita na paisagem cultural holandesa.
É esse o clima que se propaga, hoje, na Europa. Perceptível em graus variados em todo o continente, o desmantelamento da cultura aumentou também na Itália e, sobretudo, na Hungria, onde o anti-intelectualismo da classe dirigente, misturado a palavras de ordem abertamente antissemitas e homofóbicas, levou à substituição do diretor do Teatro Nacional de Budapeste por um mercenário do Fidesz, partido da direita nacionalista.
A esse fenômeno, soma-se outro, que gangrena o teatro há uns dez anos. Sob o pretexto de estimular as estruturas independentes, os protagonistas desse meio se insurgem uns contra os outros. Os fomentadores do teatro livre, ou off,clamam de todas as maneiras que fariam um melhor uso das somas devoradas pelas instituições públicas, fazendo, assim, sem dúvida a contragosto, uma apologia do espírito da época: nós lhes oferecemos mais arte por menos dinheiro. Não é de espantar que essa retórica fratricida encontre um eco crescente junto a conselhos municipais e dirigentes culturais. Efetivamente, o “teatro livre” apresenta uma dupla vantagem: seu nome atraente evoca a juventude, a não submissão e o romantismo, ao mesmo tempo que se presta a financiamentos de uma extraordinária flexibilidade. Na verdade, nada impede os que tomam decisões políticas de anularem suas subvenções ou de se voltarem para outros artistas.
Essa flexibilidade obriga cada projeto a ter êxito imediato, sem o qual seus autores correm o risco de se ver novamente na miséria. Ela impede ao mesmo tempo as companhias e os dramaturgos de inscreverem sua evolução artística durante a temporada. Para equilibrar seu orçamento, os artistas ditos “livres” devem sempre correr atrás de “bicos”, em detrimento de sua pesquisa. E as diversas profissões do palco (cenógrafos, coreógrafos, maquiadores, pintores etc.) estão ameaçadas de desaparecer.
Os artistas devem enfrentar um enorme desafio: dar, ano após ano, geração após geração, um novo sentido ao teatro institucional. Muitos autores não avaliam sua chance de dispor de lugares subvencionados. Como eu, a maior parte está impregnada de uma cultura de hostilidade às instituições e observa com desconfiança esses grandes palcos de prestígio, nos quais a vaidade burguesa se pavoneou durante tanto tempo. No entanto, eles nos oferecem possibilidades de trabalho e meios de produção incomparáveis para contar uma outra história da sociedade.
Certamente, continuamos a ser os palhaços modernos de uma elite que aceita que zombemos dela a fim de desfrutar o privilégio de parecer tolerante e capaz de rir de si mesma. Abandonar esses lugares significaria, no entanto, cortarmos nossas asas e facilitarmos a tarefa daqueles que sonham nos tirar o pão da boca. Após 2008, um grande número de empresas nos Estados Unidos retirou o patrocínio, muito influente, da cultura norte-americana. Os atores pagaram caro por isso.
Além das condições materiais degradadas, vivemos uma crise estética, assim como uma crise dos conteúdos. Nos últimos anos, a criação teatral aderiu naturalmente às teorias nem sempre luminosas sobre a pós-dramaturgia e a “performance”. Curiosamente, as formas inovadoras que surgiram nos anos 1970 e 1980 continuam a orientar o credo estético de um grande número de teatros públicos e festivais, ainda que nesse assunto os imitadores estejam longe de se igualar a seus modelos. Os ingredientes dessa vanguarda insossa compõem uma papa cênica que passa por modelo do teatro moderno.
A poetologia desse teatro baseia-se na ideia de que a ação dramática não é mais de nossa época; que o homem não poderia se compreender como mestre de suas ações; que existem tantas verdades subjetivas quanto o número de espectadores presentes; que os acontecimentos representados no palco não exprimem nenhuma verdade válida para todos; que nossa experiência fragmentada do mundo somente encontra sua tradução num teatro fracionado, em que os gêneros se justaponham: corpo, dança, fotos, vídeos, música, palavra... Essa imbricação sensorial assegura ao espectador que este mundo caótico permanecerá para sempre indecifrável e que não há espaço para procurar ligações de causalidade ou culpados.
Como seu homólogo socialista, esse “realismo capitalista” estetiza uma ideologia vitoriosa, e não é menos peremptório que ela. Em um mundo dominado pela doutrina neoliberal, nada poderia dar mais prazer a seus beneficiários que estes pressupostos: ninguém é responsável por nada, e a complexidade do mundo torna ilusória toda tentativa de circunscrever seus mecanismos.
Evidentemente, nem todos os representantes do teatro pós-dramático aderem a essa visão. O trabalho de algumas figuras do teatro documentário, como o do coletivo alemão Rimini Protokoll1 ou o do dramaturgo suíço Milo Rau,2 que muitas vezes beira o jornalismo, parece mais esclarecedor que a maior parte das peças montadas habitualmente. Seu sucesso ilustra, à sua maneira, a crise do teatro tradicional, que, ao se concentrar no repertório clássico, se desconectou da realidade. Pouco preocupado em fornecer ao público um mínimo de reflexo de sua vida cotidiana, o estetismo clássico se fixou há trinta anos numa piedosa reverência ao passado.
No meio desse círculo fechado, ou dessa espiral descendente, o pacto que liga o teatro às disputas políticas e sociais de seu tempo se decompõe inexoravelmente. Mesmo que o jogo se ressinta disso, os atores vão buscar suas emoções nos grandes antigos mais do que em sua própria carne. Consequentemente, especialistas da vida cotidiana mostram-se mais inspirados para testemunhar o estado do mundo do que os atores clássicos, de quem no entanto é a função.
Aí está o nó da crise. Para sair dela, o teatro deveria pensar em fornecer aos seus atores uma formação inicial e contínua. Dramaturgo no Berliner Ensemble, Bertolt Brecht demandava a seus atores que se confrontassem com o real, que assistissem a audiências judiciárias, que adentrassem nas fábricas para compreender, com conhecimento de causa, o comportamento de seus contemporâneos. Faço o mesmo com os meus, convidando-os a se inspirar em sua própria biografia e em suas observações cotidianas.
Que efeitos o temor de ser relegado socialmente produz nos semelhantes? Como a obrigação de ter êxito afeta nossas emoções, nossos sentimentos, nossos desejos? Em que medida nossa vida privada se submete ao ditame da performance? Quantos futuros se quebram pela condição social do assalariado flexível? Por que dispomos de um vocabulário altamente refinado para analisar nossas relações conjugais, amorosas ou sexuais, enquanto tão cruelmente nos faltam palavras para descrever nosso fracasso político (“sistema deteriorado”)? Por que gostamos de alardear uma psicologia de boteco? Por que não tratamos com a mesma paixão desgastes sociais que se espalham há uns vinte anos, apesar de terem graves consequências em nosso corpo e nosso espírito – horários de trabalho extensíveis, quantificação do cotidiano, obrigação de permanecer disponível para contato permanentemente, mensagens profissionais recebidas por e-mail até tarde da noite, identificação total com a empresa que me emprega, como se eu fosse casado com ela? Vemos que essas realidades penetram até nos ossos das pessoas com quem cruzamos. Como explicar de outra maneira a recrudescência de artigos da imprensa sobre as doenças do trabalho, o estresse, a depressão, a síndrome de esgotamento profissional? A infiltração do pensamento econômico nos mais ínfimos vasos capilares da sociedade moderna deforma nosso corpo, desfigura nossos afetos.

Santuário habitado por uma força regeneradora
É disso que o teatro deveria falar. É isso que poderíamos representar no palco, e com talento, por menos que alimentássemos nossa imaginação com a fonte que se acha bem à nossa volta e que nos nutre. Em minha opinião, o teatro ideal guarda a promessa secreta de abordar todos esses assuntos.
Por seu financiamento público, o teatro institucional escapa ainda da lógica da competitividade, mesmo que seja verdade que as considerações de rentabilidade estejam ganhando terreno. Talvez a sociedade retomasse um pouco da confiança em si, se ela encontrasse alguns palhaços bem ousados para lhe apresentar um espelho, recolocá-la em questão, rir dela sem parar.
O teatro poderia ser assim: um santuário habitado por uma força regeneradora, quando as indústrias dedicadas à narração do mundo estiverem atormentadas por uma exigência de rentabilidade proporcional à sua falta de liberdade – basta ligar a televisão para se convencer disso. A frustração suscitada por mídias cada vez menos independentes explica, em parte, por que tanta gente, principalmente jovens, corre para o Schaubühne com a convicção de encontrar ali um lugar onde ainda se pode atuar e pensar livremente. Um lugar onde se podem ver no palco as distorções corporais de pessoas especialistas em flexibilidade.
Ao que se soma que, no teatro, tudo se desenvolve no momento: é impossível fazer várias tomadas ou modificar a montagem como no cinema. É aqui e agora que o ator experimenta seu papel e que o espectador, como especialista de sua própria percepção, decide se quer mesmo se envolver no jogo. Em nossa existência superdigitalizada, em que o real é mantido a distância por uma tela de duas dimensões, a missão e o desafio do teatro se resumem a este momento raro em que uma ação virtual reúne toda a realidade do mundo.

Thomas Ostermeier
Dramaturgo, é diretor do Schaubühne de Berlim


Ilustração: @.liz

1Nome que designa vários artistas cujas cenografias experimentais misturam teatro e realidade.
2          Dramaturgo e ensaísta suíço que trabalha em reconstituições teatrais (reenactment) de situações violentas: guerra em Ruanda, processo do casal Ceausescu na Romênia...
02 de Abril de 2013
Palavras chave: Alemanhaculturapolíticateoriateatroinvestimentopatrocínioincentivoartes,pesquisavanguardaBrecht,

sábado, 23 de fevereiro de 2013


Ator Pós-Moderno

De agora em diante,
não mais encarnarei fantasmas
de outro tempo e lugar.
Estou farto de expelir palavras alheias,
paixões importadas,
retórica elisabetana e absurdo francês.
Agora, no tablado ou em qualquer parte,
serei eu mesmo, eu próprio, ego ipsum
eu e eu, presença onipotente
na plenitude deste aqui-agora.
Meu corpo enfim, despido de personas,
será servido no banquete das sensações,
vida a vazar das veias,
sem outra metáfora senão o sangue jorrando
na epiderme desta aura intransferível.
Fora a corcunda de Ricardo III, a tiara de Blanche Dubois,
Não mais! Não mais!
Longe de mim os heróis do povo, os vilões
capitalistas de casaca,
as velhas beatas e todas
as histéricas nelson-rodriguianas!
Eu, apenas eu, euzinho pura e simplesmente,
na entrega de meu corpo irredutível
à vertigem do olhar.
Abaixo a representação, o eterno macaquear de seres de papel!
Todos saberão que sou eu, eu mesmo, o único
autor e executor
deste campo irradiante de energias.
Eu enfim meu tema e assunto e circunstância,
na pura epifania de mim-mesmo!

Só um detalhe ainda me atrapalha
e bem sei quem mora aí:
ninguém menos que Mephisto,  o arqui-inimigo
o intrigante, o embusteiro, o pai das ilusões.

Só um detalhe, um mísero detalhe:
- Quem sou eu?

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013


UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE TEATRO
GRUPO DE PESQUISA DRAMATIS

APRESENTAM

CICLO DE LEITURAS DRAMÁTICAS DA UFBA

NOVA DRAMATURGIA – BARRA 69


Por volta de 1968 aparece na cena brasileira, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas não se restringindo a estes lugares, uma geração de dramaturgos inaugurando uma tendência inovadora: José Vicente, Leilah Assumpção, Antônio Bivar, Consuelo de Castro e Isabel Câmara, os autores mais representativos.

Uma das características imediatamente visíveis nos textos é o viés autobiográfico, apresentado por meio da linguagem despojada das regras literárias articuladoras da dramaturgia que se fazia até então. O forte acento confessional singulariza a produção dos textos, tornando-os bem diversos da produção dramatúrgica posta em movimento pelos Seminários de Dramaturgia do Teatro de Arena de São Paulo iniciado em 1958, de forte acento político e social.

Antônio Bivar, Consuelo de Castro, Isabel Câmara, Leilah Assumpção, Isabel Câmara e Zé Vicente afastam-se dos temas e das formas trabalhadas pelos autores que produziram uma dramaturgia engajada, voltada para a discussão dos problemas sociais. Tomando outro rumo, os jovens autores optam pelo confessionalismo, instaurando o poético e o político por outro viés. Estão em cena, não mais os personagens como o favelado, o vaqueiro, o retirante, o operário, entre outros, mas aqueles oriundos da classe média urbana que perde o rumo diante dos acontecimentos nacionais e internacionais.

É sabido que a finalização da década de sessenta é plena de reviravoltas: questionam-se hábitos, costumes, posicionamentos políticos e estéticos. Em meio ao ambiente contracultural, o Brasil vive o auge repressivo do governo civil-militar. Assim, os personagens criados pelos novos autores espelham a situação daquele momento.

Ao longo do tempo, boa parte da dramaturgia deste Ciclo de Leituras Dramáticas da UFBA foi esquecida. Ainda que Zé Vicente receba a atenção dos encenadores no presente, Leilah Assumpção e Consuelo de Castro continuem produzindo para o palco, Antônio Bivar, um dos participantes mais transgressores do grupo, já não escreve para o teatro. Isabel Câmara completa o quadro que comporta também Carlos Alberto Soffredini, Mário Prata e o baiano Ariovaldo Matos.

Seis textos compõem o Ciclo de Leituras Dramáticas – Nova Dramaturgia Barra 69: O Assalto, de Zé Vicente (Direção Harildo Déda), Fala Baixo Senão Eu Grito, de Leilah Assumpção (Direção Ewald Hackler), O Desembestado de Ariovaldo Matos (Direção Sérgio Nunes Melo), As Moças, de Isabel Câmara, (Direção Elisa Mendes), À Flor da Pele, de Consuelo de Castro (Direção Eliene Benício), Cordélia Brasil, de Antônio Bivar (Direção Celso Nunes).

A escolha dos textos baseia-se na importância que tiveram quando levados ao palco e por conterem elementos que dialogam com o presente. Ao serem revelados, os autores receberam a atenção da crítica e do público, atraídos que foram pelas abordagens existenciais levadas à cena de maneira violenta, cruzando-se aspectos autobiográficos e os ficcionais, figuradores dos impasses de uma geração cerceada pela situação política brasileira. São textos cuja potência não diminuiu e são merecedores de novas leituras.Não haverá cobrança de ingresso. 

Não haverá cobrança de ingresso. Para os espectadores que assistirem três leituras do Ciclo será fornecido um certificado.
PROGRAMAÇÃO
  
O ASSALTO
Zé Vicente

DIREÇÃO
Harildo Déda

ELENCO
Nando Zâmbia, Vinícius Martins,
Patrícia Oliveira
TEATRO MARTIM GONÇALVES
26 de fevereiro, 18:30
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FALA BAIXO SENÃO EU GRITO
Leilah Assumpção
DIREÇÃO
 Ewald Hackler
ELENCO
 Joana Schnitman e Osvaldo Baraúna

TEATRO MARTIM GONÇALVES
27 de fevereiro,18:30

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O DESEMBESTADO
Ariovaldo Matos
DIREÇÃO
Sérgio Nunes Melo
ELENCO
Newton Olivieri, Ana Tereza, Thiago Carvalho
Larissa Raton

 TEATRO MARTIM GONÇALVES
05 de março, 18:30

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 AS MOÇAS
Isabel Câmara 
DIREÇÃO
Elisa Mendes
ELENCOMárcia Andrade
 Laura Sarpa; 
Amauri Oliveira
TEATRO MARTIM GONÇALVES
06 de março, 18:30

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À FLOR DA PELE
Consuelo de Castro
DIREÇÃO
Eliene Benício
ELENCO
Eveline Ferraz, Raimundo Matos de Leão
Marcos Moreira
TEATRO MARTIM GONÇALVES
12 de março, 18:30

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CORDÉLIA BRASIL 
Antonio Bivar
DIREÇÃO
Celso Nunes
ELENCO
Jacyan Castilho, Marcelo Praddo, Saulus Castro
Antonio Fábio
TEATRO MARTIM GONÇALVES
13 de março, 18:30 
Coordenação do Ciclo de Leituras
Raimundo Matos de Leão
Joana Schnitman